terça-feira, 29 de dezembro de 2009

BAÚ DO ABOIADOR

SÁBADO DE ALELUIA – O CONTRA-EVANGELHO DE JUDAS - PARTE II

Ali em Queriote – covil de meu nascedouro e de minhas angústias – fui moldado pelas mãos invisíveis e indeléveis da predestinação e da prepotência romana. Tornei-me de fato Judas de carne e ossos, uma bomba-relógio preste a explodir, capaz de expurgar meus princípios e de esfolar minhas vísceras em prol de meus ideais. Aquele vilarejo pobre e dominado pelos romanos por todos os lados fazia-me verter em sonhos libertários. Minha vocação de excitar o rancor aos invasores tornou-me um subversivo e, por incrível que pareça, um estranho no ninho. Os nativos tinham medo que aquele radicalismo nos levasse a um genocídio. Chegou ao ponto de Simão, dá-me todas as economias da família, para que eu me exilasse em outro lugar. Escolhi a Galiléia – não poderia ser uma mera coincidência. Estava eu a observar pescadores em suas embarcações ancoradas. Quando Jesus apareceu e disse-me: “O que fazes?”. “Nada. Apenas olho aquele pescadores secando ao sol e sendo explorado por uma escória”. “Judas vem. Não por que te escolho, mas o próprio Rei o nomeia para construir o nosso reino. Onde os pescadores sequem ao sol, mas não sejam escravos de ninguém”. Senti a convicção na doçura da voz daquele que nem conhecia, contudo já nutria certa confiança. Encontrei-me com o destino de túnica, carne, ossos e luz. Não fui covarde, aceitei o que para mim estava predestinado. Uns diziam que eu era visionário, um louco preso ao seu tempo. Que se danem os medrosos, eu fiz aquilo que achei que é certo. Quem nunca errou? Na verdade, eu fui o último escolhido e o mais contestado. Era um estrangeiro e os galileus repudiavam os nativos de Queriote. Jesus adorava uma controvérsia e uma polêmica; e a minha entrada em seu reduto como era uma pedrada nos galileus. Pedro olhava-me sempre com desconfiança. Naquele dia em que o Nazareno ordenou aos apóstolos que fossem preparar a ceia da páscoa, ficara com Ele apenas eu, André e Tomé. Senti que a alma do Mestre estava irrequieta. Ele olhou-me e acenando chamou-me. Aproximando-se dele, disse-me: “Venha comigo, Judas” e dali seguimos até uma venda, pedimos uma garrafa de vinho e sentamos frente a frente. “O que está acontecendo, Mestre?”. “Cale-se, eu vou falar só uma vez” aquilo me serviu como uma mordaça.(...)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

BAÚ DO ABOIADOR - Parte I

SÁBADO DE ALELUIA – O CONTRA-EVANGELHO DE JUDAS

Quando aquela corda atada à figueira me apertou a aorta, eu sorri. A fragrância da morte era semelhante aos dos figos maduros e meus pés cinzentos faziam um leve movimento, como se dançasse para o destino. A minha vida nesse instante atravessa sorrateiramente diante dos meus olhos encarnados. As reminiscências dantes afundadas no lado obscuro e esquecidas da minha cabeça, agora bóiam no meu consciente. Consigo distinguí-las uma a uma. Lembro-me bem, ou melhor, de quase tudo. Ao sul da Judéia. Região de Moabe. A pequena cidade de Queriote testemunhou meu nascer pelas mãos de uma parteira, cujo nome apagou de meu relicário. Fui concebido como uma criança qualquer, provida dos gemidos lascivos de meus pais; de ninfas gaméticas e das pedras escritas. Nasci sem influência divina, mas por intervenção divina eu havia de nascer. Não ouve estrelas, o céu fechou-se perante meu choro, recusando-se a mostrar sequer a lua em seu brilho. O negrume daquela noite deu-me loas ao som da chuva que caía sobre o teto de minha casa. Simão Iscariotes, meu pai, há dois dias confinado numa insônia, não poupou energia e veio me cortejar com afagos. Recordo-me com fidelidade, pois depois de crescido, papai me disse tudo. Simão envolveu-me em seus braços cálidos e de sua boca saiu o meu estigma, o estigma que me marcaram a ferro e fogo, o nome Judas Iscariotes. Nunca imaginei que um nome pudesse crismar a trajetória de um ser ainda calhado pelo líquido amniótico, mas meu mapa da vida já estava traçado. Talvez por Cartógrafo que está acima de tudo e todos, alguém que tem a visão panorâmica do alto deste imenso “labirinto do Minotauro” que simboliza a vida de cada um de nós. Se o espermatozóide que estava cosido a minha alma e tatuado com a insígnia de Judas, não houvesse nascido na gleba de Simão. Eu haveria de nascer em qualquer outra gleba, seria o mesmo Judas, não haveria escape. Meu nome já era cogitado no velho testamento. O destino enamorava e prenunciava-me ao povo Hebreu antes de minha existência. Ó destino, irônico e meticuloso destino, quem o cinge em nossa alma? Será o mesmo Cartógrafo que nos observa de sua escrivania? (...)