quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

BAÚ DO ABOIADOR - Parte I

SÁBADO DE ALELUIA – O CONTRA-EVANGELHO DE JUDAS

Quando aquela corda atada à figueira me apertou a aorta, eu sorri. A fragrância da morte era semelhante aos dos figos maduros e meus pés cinzentos faziam um leve movimento, como se dançasse para o destino. A minha vida nesse instante atravessa sorrateiramente diante dos meus olhos encarnados. As reminiscências dantes afundadas no lado obscuro e esquecidas da minha cabeça, agora bóiam no meu consciente. Consigo distinguí-las uma a uma. Lembro-me bem, ou melhor, de quase tudo. Ao sul da Judéia. Região de Moabe. A pequena cidade de Queriote testemunhou meu nascer pelas mãos de uma parteira, cujo nome apagou de meu relicário. Fui concebido como uma criança qualquer, provida dos gemidos lascivos de meus pais; de ninfas gaméticas e das pedras escritas. Nasci sem influência divina, mas por intervenção divina eu havia de nascer. Não ouve estrelas, o céu fechou-se perante meu choro, recusando-se a mostrar sequer a lua em seu brilho. O negrume daquela noite deu-me loas ao som da chuva que caía sobre o teto de minha casa. Simão Iscariotes, meu pai, há dois dias confinado numa insônia, não poupou energia e veio me cortejar com afagos. Recordo-me com fidelidade, pois depois de crescido, papai me disse tudo. Simão envolveu-me em seus braços cálidos e de sua boca saiu o meu estigma, o estigma que me marcaram a ferro e fogo, o nome Judas Iscariotes. Nunca imaginei que um nome pudesse crismar a trajetória de um ser ainda calhado pelo líquido amniótico, mas meu mapa da vida já estava traçado. Talvez por Cartógrafo que está acima de tudo e todos, alguém que tem a visão panorâmica do alto deste imenso “labirinto do Minotauro” que simboliza a vida de cada um de nós. Se o espermatozóide que estava cosido a minha alma e tatuado com a insígnia de Judas, não houvesse nascido na gleba de Simão. Eu haveria de nascer em qualquer outra gleba, seria o mesmo Judas, não haveria escape. Meu nome já era cogitado no velho testamento. O destino enamorava e prenunciava-me ao povo Hebreu antes de minha existência. Ó destino, irônico e meticuloso destino, quem o cinge em nossa alma? Será o mesmo Cartógrafo que nos observa de sua escrivania? (...)

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