sábado, 3 de novembro de 2007

UM ABOIO

A boca ressequida roga-lhe no silêncio do quarto um cálice de cicuta, talvez para saciar uma sede da alma. Já não lhe importa as coisas imagéticas ao seu redor, não se conformava com seus contornos citadinos e a cruz de axiomas que caleja seus ombros. Ansiava a cicuta numa cerimônia inaudita, cujos olhos encharcados comandem o ato. Queria o amargor da cicuta por sobre a língua e obedientemente descendo pelo esôfago para destruir cada célula que compõe o “eu”. Seu “eu” pronome pessoal paradoxalmente impessoal, covarde, facínora e que se ocultara nas diversas máscaras que mundo lhe vendeu, havia se cansado das “verdades” e sonhava saborear as “mentiras”. Uma vida entregue ao vácuo, mesmo rodeado por um turbilhão de coisas. Seu “eu”, a vida inteira, prefiro drogar-se com a inépcia cientifica dos abutres catedráticos. Entre o antídoto da razão e a cicuta da poesia... A razão seduziu-lhe com um discurso bem polido, usando-se de axiomas, cujos seus alicerces eram tão inseguros quanto os castelos de areia na beira do mar expostos a maré alta. Renegou os anseios da alma pelo simples fato de haver paradoxos com a razão. Quantas vezes a cicuta esteve ali e ele a renegou obedecendo a uma ordem vigente, que a desordenava como ser humano. No decorrer da vida fora agraciado com os títulos, comendas e diplomas que lhe empanturram o ego e lhe amofinou o espírito. Hoje enjaulado num paletó opaco e asfixiado por uma gravata de seda, deseja vomitar o antídoto e provar por um instante a cicuta, sentir o amargo numa vida deveras doce. Divorciar-se da “verdade” e fornicar com a “mentira”, mergulhar no pecado como um porco que se lambuza numa poça de lama. Esquivar-se do sucesso e beijar na boca do fracasso, sem medo de encará-lo.
A sua boca sabia que beber um cálice de cicuta era algo fatalmente nova, a sua vida seria extirpada em minutos e sua alma iria transcender com espasmos mais intensos do que o prazer de uma trepada.

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